Li o livro “Missa d’Alva” de Faria de Morais, mais conhecido em Fão por Chico Cubelo, e gostei muito.
É uma descrição simultâneamente emotiva e rigorosa, na medida do possível, da vida em Fão desde as origens até meados do século passado, onde se nota claramente nas entrelinhas que o autor é um fangueiro apaixonado pela sua terra. Esse amor a Fão é comum a todos nós que sentimos esta terra de uma forma muito especial . De alguns dos personagens abordados no livro, como o enigmático Avelino, o galhofeiro Polainas, o atarefado Lareco, o pobre Marcelino e o simpático Sorriso tenho imagens vívidas, que recolhi nos meus tempos de juventude.
A linguagem cuidada do autor denota a sua ligação profissional às letras e em particular ao jornalismo. Domina a palavra e a sua escrita vai além da estética jornalística, denotando também uma sensibilidade notável.
Lembro-me bem das boleias que me dava para o Porto, no seu dois cavalos vermelho. Eu ia para a faculdade e ele para o jornal. Graças a esta boleia viajava na segunda-feira em vez de domingo à noite e ficava mais um bocadinho em Fão. À sexta-feira regressava com ele e noutras vezes com o Dr. Emílio, que exercia advocacia na cidade Invicta e não perdia um fim de semana em Fão.
O Chico Cubelo sempre foi para mim aquilo que sonhei num fangueiro. Uma pessoa afável, culta, com um sorriso enorme e sempre aberto aos outros, mesmo aos mais novos como eu. Aliás devo-lhe a oportunidade de jogar ténis com ele no “court” do hotel do Ofir. Adorava desporto e de partilhar este gosto com quem quisesse alinhar. Recordo-me aliás de participar com ele, o meu pai e muitos mais em boas futeboladas na Junqueira.
No seu livro desfilam ao longo da história de Fão os verdadeiros heróis desta terra de labor e sofrimento que são os pobres, os que nada têm de seu e labutam pelo pão de cada dia. É como se a sua heroicidade fosse proporcional ao sofrimento das suas vidas. Os maus são claramente aqueles que deles se aproveitam, os usurários. O lado bom está nos homens de coração, muitos deles ligados à Misericórdia de Fão. E na zona cinzenta estão todos os outros.
Os tempos actuais também não são fáceis para muitos.
Contudo a sociedade, ao longo das últimas décadas, principalmente após 25 de Abril de 1974, tem vindo a desenvolver mecanismos no sentido de prevenir situações de penúria extrema: subsídio de desemprego para acudir aqueles que não têm trabalho, subsídio de doença para os que estão doentes e não podem trabalhar e rendimento mínmo para os que não têm quaisquer meios de subsistência. Também o serviço nacional de saúde garante acesso gratuito a serviços médicos a qualquer cidadão e muitos medicamentos são financiados pelo estado, tormando-os mais acessíveis aos mais pobres. A assistência social garante condições mínimas no apoio a muitos idosos, crianças com problemas familiares, etc. E além disso existem ainda as Misericórdias, aliás pioneiras no apoio aos carenciados e que continuam a desenvolver um trabalho insubstuível.
O sofrimento e privações extremas a nível físico terminaram. E agora? Quem serão os heróis deste mundo moderno? Quais são os desafios actuais?
Há desafios e que desafios.
Há que matar agora a fome que cada um tem de se encontrar a si mesmo. Este é um repto muito difícil e cada vez mais estou convencido de que ninguém o consegue enfrentar sem a ajuda dos outros.
A maior abundância que caracteriza a sociedade actual permite às pessoas viverem nas suas conchas, em regime de auto-suficiencia, numa bolha artificial, como afirma o professor Joaquim Peixoto, ilustre fangueiro, de quem tive o privilégio de ser aluno.
É o trabalho, o sofá, a tv, a internet. Depois chega o fim de semana. Estamos cansados e aproveitamos para retemperar forças, em casa… E o ciclo repete-se. Chegam as férias e cada um vai para um local exótico se tiver posses para tal. Se não tiver tenta sair para um local diferente. As férias terminam e volta a rotina. E quando damos por ela passou uma vida. E vemos que apesar de toda a abundância, falta qualquer coisa dentro de nós. Há um vazio.
Se calhar antigamente as privações obrigavam as gentes a sair à rua e a encontrar alegrias em coisas mínimas e uns com os outros. Tudo o que acontecia era motivo para uma conversa e as novelas eram criadas por cada um com personagens reais. A fome, a miséria dentro das casas puxava as pessoas para a rua e estas ajudavam-se mútuamente.
As lavadeiras iam para o rio e falavam umas com as outras. As mulheres e crianças iam buscar àgua aos fontanários. Os homens, nos momentos de lazer iam para os tascos ou então para os clubes. As crianças brincavam na rua, em bandos. Aos domingos muitos iam ao futebol. A vida obrigava a este contacto social e havia alguma alegria. Também se faziam os teatros de revista onde era dada a oportunidade a quem tinha algum talento de o mostrar. A comunidade ia ver e todos partilhavam. Os artistas da terra tinham então os seus momentos de glória.
Contudo não eram só flores. Em Fão havia, e se calhar ainda há, muita distinção de classes, fossem elas sociais, etárias ou culturais. Vislumbrei, mais de que queria, os fantasmas da ignorância e maledicência. Vivi choques entre gerações, falta de diálogo, talvez porque a vida era difícil e o conhecimento parco.
Inerente a cada ser humano é a sua necessidade, desde tenra idade, de ser aceite e reconhecido pela comunidade. Quem não gosta de uma palavra amiga? Quem não aprecia um elogio ou algo que o faça sentir especial?
É este o grande desafio. Sermos capazes de ter uma vida comunitária saudável. Isso faz com que cada elemento se sinta especial e sinta simultâneamente que cada um dos outros é também especial. Mata-se a fome do espírito que também necessita de alimento como o corpo.
O refúgio no individualismo ou em grupinhos não me parece ser o caminho. É tempo de pensamos nisto e sairmos para a rua. Não para destruir mas para criar. Não para dominar mas para compartilhar. Não para desprezar mas para acarinhar. Não para discutir mas para dialogar com diplomacia.
E a vila de Fão e a sua comunidade, em abono da verdade, muito tem realizado neste domínio.
Existem várias organizações que envolvem a comunidade nesta vila como: misericórdia, bombeiros voluntários, clube de futebol, clube de hóquei, centro cultural, grupo de teatro, clube fãozense e uma comissão de festas que trabalha o ano inteiro para a sua realização. Organizam-se ainda outros eventos comunitários como a festa do marisco, exposições, conferências, tertúlias e marchas populares que envolvem membros da comunidade.
Também a Internet dá agora a possibilidade aos indivíduos e organizações de publicarem os seus trabalhos e de interajirem. É o caso do exemplar jornal Novo Fangueiro Online, da inovadora Esposende Tv, dos blogues individuais que nos revelam excelentes fotógrafos e grupos como a espectacular “Comunidade Fangueira”, criada pelo Né Vieira.
Mas atenção! Atenção aos mais fracos, tímidos ou marginalizados. Que a comunidade não se esqueça dos que esperam no seu canto uma hipótese de reconhecimento e de participação. Que os mais dotados não se deixem encadear pelas luzes da atenção pública e estendam a sua mão para que todos, na comunidade, tenham as suas oportunidades e se sintam valorizados.
Parabéns Tino. Esta Crónica... não encontro palavras para a classificá-la. Só digo: Formidável!
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